quarta-feira, 18 de junho de 2014

Um rastro de chumbo na vida da gente de Santo Amaro - BA

Fábrica que se instalou nos anos 1960 na cidade baiana fechou e deixou um rastro de contaminação

Escrito por Vitor Nuzzi publicado em 2013 08:25
Última modificação GILDO LIMA




Também conhecida por Santo Amaro da Purificação, por causa do nome da igreja matriz, a cidade baiana continua sofrendo com a poluição da fábrica fechada em 1993.

A instalação de uma fábrica na pacata Santo Amaro, a 70 quilômetros de Salvador, foi um alento, pois em 1960, a cultura da cana-de-açúcar há muito deixara de impulsionar a economia da região. 

Ser funcionário da Cobrac, a Companhia Brasileira de Chumbo, dava status, e “Quem trabalhava lá tinha crédito em qualquer lugar”, acrescenta Raimundo Santana Alves, morador local. 

Hoje, todos fazem parte da longa lista de queixas sobre os inúmeros problemas de saúde, decorrentes da exposição a metais pesados, como chumbo e cádmio. Muitos estão em casa, sem condições de sair. Outros tantos já morreram. 

Em dezembro de 1993, a empresa, já com o nome de Plumbum, fechou as portas sem avisar, mas, ficaram os resíduos, que, ao longo do tempo, contaminaram funcionários e moradores. Santo Amaro tornou-se, talvez, o mais emblemático caso mundial de contaminação por chumbo. 

No que já foi o portão de entrada da fábrica, hoje se encontra uma placa, atrás da grade enferrujada, que avisa: “Propriedade particular – Proibido a entrada – Área com resíduo de chumbo”. 

Em ação no ano de 2003, o Ministério Público Federal afirma que todos os argumentos exibidos pela empresa “não se revelam capazes de sequer pôr em dúvida” que Santo Amaro “foi – e continua sendo – vítima de uma poluição grave, prolongada e apenas parcialmente reversível”. 

Também, em 2003 o Ministério da Saúde fez um estudo quanto à relação causal entre exposição a metais e doenças, e ainda, destacou o fato de que os trabalhadores nunca tiveram atenção à saúde específica e diferenciada, compatível com o grau de risco de adoecimento que sofreram durante o período em que estiveram expostos. 

“Vários desses trabalhadores já têm o diagnóstico estabelecido de saturnismo”, diz o ministério, referindo-se à doença decorrente da intoxicação por chumbo. 

“Desde o começo era muito claro que tínhamos um grande problema ocupacional e ambiental, negligenciado pelos órgãos públicos e pela empresa”, critica Fernando Carvalho. “Durante 32 anos a empresa produziu 500 mil toneladas de escória (resíduo), e a prefeitura usava essa escória para fazer pavimentação das ruas. 

Desde 1980, dizíamos que isso era prejudicial à saúde, que a escória era tóxica. O Estado comia a farofa, para usar uma expressão baiana.” Segundo Carvalho, o chumbo tem vários efeitos nocivos, como anemia, paralisia, doenças arteriais, além de ser um provável cancerígeno. “Todos os ex-funcionários devem ser monitorados.” 

Alguns relatos da comunidade local: 

No bairro do Derba, na entrada da cidade, vive Luiz Alves da Silva, o Lula, 62 anos, que trabalhou por 12 anos na fábrica. Com aparência frágil, ele relata o que vem sentindo há tempos: “Tontice, pressão alta, e agora me apareceu uma dor nas pernas que não consigo andar pra longe. Eles só mandam fazer exame. Agora, o cardiologista mandou fazer exame de pulmão. Aqui não faz, só em Salvador. Mas não tenho condições de viajar”. 

Também tem restrições alimentares, não pode mais comer farinha, e sente falta de ar e dor ao mastigar. Alagoano que chegou a Santo Amaro no início do ano de 1980 para trabalhar, Lula não tem mais forças nos braços que puxavam pesados lingotes – e agora, não consegue segurar a neta de 10 anos. 

Dona Maria de Lourdes Pereira Barbosa, 71 anos, que há três perdeu o marido, José Cassimiro Barbosa, conta. “O homem morreu muito acabado. As unhas dele eram uma massa, os pés também... Andava dez minutos, parava meia hora.” Ela perdeu também o filho mais velho, outro ex-funcionário, aos 39 anos, com quatro filhos. 

José Roque das Mercês, 67 anos, morava a 300 metros da fábrica, onde entrou em 1968. “Trabalhava na boca do forno.” Aposentado por invalidez, tem osteoporose, artrose, tontura, problemas de audição e dores no corpo. “Morriam muitos animais (no entorno da fábrica), mas ninguém sabia a causa.” 

Quem também trabalhava na carga do forno, “um lugar perigoso”, era Carlos Alberto Pereira Paranaguá, 58 anos, servente que ficou na fábrica entre 1988 e 1989 e se queixa de problemas na visão e nos joelhos. Foi afastado pelo INSS. 

Seu colega Antônio Severino Oliveira, 54 anos, entrou lá em 1980 e saiu em 1993, dois meses antes do fechamento. Tem pressão alta e reclama de dores que não cessam. “Sempre tive problema de dor. Um dia, o médico chegou e me deu (receitou) 184 injeções. Até hoje não sei para que era”, conta Antônio, que tenta reabrir seu processo. “Não recebi nem um real, não trabalhei mais em lugar nenhum, nem me aposentei.” 

O ex-funcionário Antônio Roque de Sousa Serra conta que “o rim parou” há alguns anos e o levou à hemodiálise. Aposentado, recebe o equivalente a um salário mínimo. “Minha esposa é que me segura.” 

De 1969 a 1975 na Cobrac, José Alves Ferreira sofreu AVC e tem dificuldade de falar. Trabalhava na metalurgia, carregando carga do forno. Aposentou-se por invalidez e ganha um salário mínimo. “Ruim, ruim”, limita-se a dizer, fazendo um gesto com a mão. Vive com a mulher, Leonice. “Eu, ele e Jesus”, diz ela. 

Professora titular do Instituto de Química da UFBA, Tania Tavares, ao lado de Fernando Carvalho, também acompanha os problemas de Santo Amaro há algumas décadas. Com dificuldades, conta: “Eu nem podia entrar na fábrica. A indústria não deixava”. Ela lembra que a instalação se deu em uma época que não havia nenhuma preocupação com danos ambientais. Hoje, a contaminação maior está no solo. “A empresa deixou lá algumas toneladas de resíduo sólido.” 

Nos anos 1970, com as primeiras pesquisas sobre efeitos do chumbo em pescadores e trabalhadores, a empresa teve negada licença para ampliar a produção. Estudos feitos a partir da década de 1980 mostraram contaminação em crianças, com altas concentrações de chumbo e cádmio no sangue. 


Assista o vídeo:

Texto adaptado.

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